domingo, 21 de março de 2010

Que espécie é esta?

Acho que todo biólogo alguma vez na vida já se deparou com a seguinte pergunta: “que espécie é esta?”. Como se fosse uma tarefa trivial e inerente a qualquer pessoa que se propôs a estudar Ciências Biológicas.

A descrição de uma espécie nova remete a chamada taxonomia alfa, o processo de descrições das entidades biológicas e sua adequação às categorias biológicas (o processo de classificação). É a etapa primordial de qualquer estudo que vise conhecer a diversidade que nos cerca, e vem sendo realizado há centenas de anos, a partir do momento em que o homem refletiu o mínimo que fosse sobre o ambiente que o cerca. Não estamos sozinhos e o que nos cerca deve, de alguma forma, ser reconhecido e diferenciado a título de comunicação.

A taxonomia inicia-se com coletas e posterior reconhecimento do material coletado. Passada essa etapa, comparações com material depositado em coleções de museus são inevitáveis a fim de reconhecimento de determinado espécime como novo ou não. Se não, há apenas o reconhecimento de mais um ponto de distribuição para uma espécie já conhecida. Se sim, iniciam-se os procedimentos de descrição, montagem e preparação do material, ilustrações e fotografias, preparação e submissão do manuscrito, e a fixação final de um nome a um espécime depositado em alguma instituição científica por meio da publicação de um artigo científico. Só a partir desse momento temos uma nova espécie.

Mas o que representa isso? Um trabalho de taxonomia criterioso e bem feito, que demora em média e de forma otimista um ano para ser publicado, sem expectativas de reconhecimento por parte da sociedade e muito menos das instituições de fomento é o suficiente para responder a pergunta?

Infelizmente, o estado da arte da taxonomia hoje não é dos mais promissores. A velocidade com que as espécies vêem sendo descritas e classificadas é muito menor que a velocidade do processo de extinção, seja por causas naturais ou não. Vivemos um momento em que há um declínio de pessoas interessadas em fazer taxonomia (ciência básica) e um desinteresse geral da população em conhecer e divulgar resultados que não sejam aqueles das pesquisas aplicadas, ou seja, úteis aos seres humanos. Sem contar as restrições a coletas e empréstimo de material biológico.

Eu não acho que esta seja uma tarefa restrita a jornalistas e editores de revistas. Acredito que os cientistas são responsáveis por divulgar seus resultados em uma linguagem acessível à população em geral. Esse é um dos motivos pelo qual eu criei este blog.

Mas a resposta a pergunta que sempre nos deparamos não é simplesmente o nome. Os nomes pertencem a entidades que se relacionam ao longo do tempo e no espaço, que vêem se modificando ao longo de milhares de anos. Como estabelecido por Croizat (1894-1982), vida (forma) e Terra (espaço) evoluem juntos ao longo do tempo. Reconhecer essas relações evolutivas é uma parte importantíssima do processo e a que permite que essas espécies sejam estudadas em etapas posteriores, como modelos em estudos de ecologia, biogeografia, fisiologia, genética, biologia molecular, embriologia, entre outras.

De que adianta um estudo realizado com modelos biológicos dos quais não se sabe nem mesmo o nome, a que grupo pertence, a quais espécies este meu modelo relaciona-se e para quais grupos meus resultados podem ser extrapolados e para quais não?

Só a Sistemática pode abarcar todas essas questões. A Sistemática é a unidade unificadora de toda a Biologia, o pilar da Biologia Comparada, e é sustentada por três tripés: taxonomia alfa, estudo das relações evolutivas e aplicação desses dados em áreas específicas da Biologia.

A Biologia é uma ciência ainda em construção, mas ao menos desde Aristóteles (384-322 a.C.) pode-se dizer haver uma ciência da Biologia. Atualmente, a Biologia Comparada é uma mistura de paradigmas acumulados ao longo de séculos e corresponde a uma integração de diferentes áreas como a sistemática, a biogeografia e a embriologia. A compreensão da diversidade biológica, da origem do padrão de semelhanças e diferenças é o problema da Biologia Comparada, de modo geral, e da Sistemática, em particular.

O pensamento biológico desenvolveu-se em torno de especialidades, passando de uma visão idealista do homem sobre sua posição dentro da diversidade biológica para uma compreensão das características humanas dentro de um enfoque histórico e temporal. A discussão sobre a gênese da diversidade tem raízes antigas, mas mesmo dentro de um contexto criacionista houve discussões sobre aspectos particulares do processo de criação, em alguns casos questionando pressupostos platônicos e aristotélicos quanto à ontologia das espécies. O advento da teoria da evolução permitiu uma compreensão mais clara da origem da diversidade e da ordem subjacente a ela, mas foi o desenvolvimento de um método de reconstrução da história evolutiva dos grupos, a Sistemática Filogenética ou Cladística, fundamentada pelo entomólogo alemão Willi Hennig (1885-1965), que permitiu a unificação das diferentes áreas da biologia no escopo da Biologia Comparada.

A meu ver, com exceção de algumas espécies presentes no cotidiano de cada biólogo, dificilmente consigamos responder essa pergunta que nos persegue desde o momento em que prestamos vestibular. Não só porque a diversidade que nos cerca é pouquíssimo conhecida ou porque o processo de reconhecimento de espécies envolva a utilização de recursos disponíveis apenas em instituições de pesquisa, mas simplesmente porque um nome sozinho nada representa além de mais um em um somatório de milhões ou bilhões.

A pergunta correta, e essa sim os biólogos têm condição de responder de prontidão, é: com quais espécies esta se relaciona no tempo e no espaço?

Créditos
As imagens são de Chico Felipe (INPA)

quarta-feira, 3 de março de 2010

Interações inseto-planta: polinização e coevolução

O Cretáceo (145-65 ma), além de ser representativo em número de ordens de insetos viventes, é também o período geológico de irradiação do maior grupo de plantas ainda dominantes nas paisagens terrestres, as Angiospermas.


As angiospermas compõem um grupo monofilético, ou seja, um grupo natural com uma história evolutiva única, relacionado a um grupo particular de “Gimnospermas”, Gnetales. O registro fóssil de Gnetales data de 60 ma antes das primeiras angiospermas conhecidas, e já há a presença de uma estrutura reprodutora chamada “flor” e de possíveis associações com insetos polinizadores.


A polinização nada mais é que a transferência do grão-de-pólen da planta masculina para a planta feminina, culminando na fecundação. Em sua forma primitiva e ainda presente em alguns grupos de plantas era realizada pelo vento, mas na maioria das vezes se dá por meio de agentes polinizadores, como aves, mamíferos e insetos. Cerca de 85% de todos os eventos de polinização atuais são fruto da ação de insetos e os primeiros registros dessas interações datam de 134-140 ma, juntamente com a irradiação das angiospermas.


Especula-se que os insetos, originalmente, visitavam as plantas em busca de alimento, atuando como predadores, sendo a polinização uma conseqüência indireta. Dentre as 32 ordens de insetos conhecidas atualmente apenas seis associam-se à polinização: Thysanoptera, Hemiptera, Coleoptera, Hymenoptera, Diptera e Lepidoptera. Esses seriam compensados com alimento e as plantas com o aumento de sua diversidade genética, assim como sua área de distribuição, favorecendo a exploração dos recursos disponíveis e diminuindo a competição intra-específica.


Eventos de polinização isolados não explicam a diversidade de formas de insetos e plantas conhecidas hoje, mas a irradiação conjunta desses grandes grupos no Cretáceo, passando por um período de intensa atividade vulcânica, deriva continental e fragmentação da Gondwana (120-100 ma), pode explicar a distribuição contemporânea de muitas plantas e animais.


O aparecimento de um determinado grupo de plantas, muitas vezes, foi acompanhado pelo surgimento paralelo de um grupo de insetos explorando essas plantas. Acredita-se que as interações entre plantas e os animais polinizadores, principalmente os insetos, constituíram a força motriz na evolução das angiospermas. Como resultado dessa coevolução, os insetos e as angiospermas tornaram-se dois dos maiores grupos de organismos do planeta e essas plantas atingiram alto nível de organização no reino vegetal.


Antes da era cristã, os chineses criadores do bicho-da-seda Bombyx mori L. (Lepidoptera, Bombycidae) observaram a preferência dessa mariposa por amoras – Morus alba L. e Morus nigra L. Com o advento da agricultura e domesticação das plantas, há cerca de 10000 anos, os hábitos alimentares dos insetos começaram a chamar a atenção dos seres humanos e registros históricos e bíblicos mencionam a devastação causada por gafanhotos.


Somente em 1886, nos Souvenirs entomologiques3rd series de Jean Henri Fabre (1823-1915) é que a preferências alimentar dos insetos foi questionada e chamada “Instinto Botânico”. Só em 1964, quase cem anos depois dos estudos pioneiros de Fabre, é que Paul Ralph Ehrlich (1932- ) e Peter H. Raven (1936- ) propuseram a Teoria da Coevolução”, um modelo de evolução química entre plantas e insetos, ou seja, interações químicas antagônicas entre plantas e seus inimigos naturais são os fatores iniciais responsáveis pela irradiação adaptativa de plantas e insetos herbívoros. Essas interações históricas, ou seja, temporais, poderiam ser responsáveis pelos padrões reconhecidos em que plantas relacionadas filogeneticamente apresentam aleloquímicos semelhantes e insetos filogeneticamente próximos escolhem hospedeiros similares.


Nas palavras de Ehrlich & Raven (1964, pág. 586), “coevolução é o exame de padrões de interação entre dois dos maiores grupos de organismos com relações ecológicas estreitas e evidentes, como as plantas e os herbívoros” e “a interface entre plantas e herbívoros poderia ser a maior zona de interação responsável pela geração da diversidade terrestre” (pág. 606). Em uma síntese recente de Cornell & Hawkins (2003), as plantas desenvolveram substâncias para repelir os herbívoros e estes desenvolveram mecanismos para se adaptar ou explorar essas substâncias e, nesse processo, as plantas se tornaram mais tóxicas e os herbívoros mais especializados.


A teoria da coevolução é um ponto ainda em discussão nos dias atuais e foi ferozmente criticada, por exemplo, por Thompson (1986; 1994), Futuyma & Keese (1992), Farrel & Mitter (1993), principalmente por ser muito mais ampla do que apenas interações entre insetos e plantas. Algumas das críticas destacam que embora insetos estejam adaptados as suas plantas hospedeiras, a seleção das plantas pelos insetos é tão fraca e variável que não direcionaria a evolução das plantas; muitas defesas das plantas podem ser contra microorganismos ao invés de contra os herbívoros, uma vez que durante a herbivoria pode haver a transmissão de fungos, vírus e bactérias para as plantas; diversificações adaptativas recíprocas entre insetos e plantas podem derivar mais de características ecológicas e biogeográficas do que químicas.


Apesar das críticas à teoria de coevolução, relações específicas entre herbívoro/plantas ocorrem, como relações de mutualismos entre formigas e acácias, abelhas sem ferrão e orquídeas, figos (Moraceae) e vespas (Agaonidae), mas não explicam todos os padrões observados de defesa das plantas e adaptações dos insetos a seus hospedeiros. Só uma compreensão detalhada a respeito das diversas áreas da biologia, como ecologia, comportamento, sistemática e biogeografia, fisiologia e evolução, nos permitirá entender como se deram as relações entre plantas e insetos ao longo da história evolutiva da Terra.


Assim como nas discussões acerca da teoria evolutiva, a proposição inicial de idéias por parte de um pesquisador instiga discussões no meio acadêmico e o desenvolvimento de novas técnicas e procedimentos metodológicos, assim como a busca por novas bases de dados e evidências e o surgimento de novos zeitgest.


Tudo isso mostra que somente uma compreensão da Biologia como um todo nos permitirá entender de forma clara e completa as interações entre insetos e plantas, grupos antigos, que compartilham uma história evolutiva única e que vêem obtendo sucesso ao longo de milhões de anos, sobrevivendo aos grandes eventos de extinção conhecidos e dominando o planeta até mesmo em seus ambientes extremos, garantindo condições adequadas para o desenvolvimento das outras formas de vida.


Leituras sugeridas:

Cornell, H.V. & Hawkins, B.A. 2003. Herbivore Responses to Plant Secondary Compounds: A Test of Phytochemical Coevolution Theory. The American Naturalist 161(4): 507-522.

Ehrlich, P.R. & Raven, P.R. 1964. Buterflies and plants: a study in coevolution. Evolution 18: 586-608.

Farrel, B.D. & Mitter, C. 1993. Phylogenetic determinants of insect/plant community diversity. In: R.E. Ricklefs & D. Schluter (eds.) Species diversity in ecological communities: historical and geographic perspectives. University of Chicago Press, Chicago. pp: 253-266.

Futuyma, D.J. & Keese, M.C. 1992. Evolution and coevolution os plants and phytophagous arthropods. In: G.R. Rosenthal & M.R. Barenbaum (eds.) Herbivores: their interactions with secondary plant metabolites. Vol. 2. Evolutionary and ecological processes. Academic Press, London.

Grimaldi, D. & Engel, M.S. 2005. Evolution of the insects. Cambridge University Press, 755 p.

Gulan, P.J. & Cranston, P.S. 2008. Os insetos. Um resumo de entomologia. 3ª ed. Roca. 440 p.

Thompson, J.N. 1986. Patterns in coevolution and systematic. In: A.R. Stone & D.L. Hawksworth (eds.) Coevolution and Systematics. Oxford, Oxford University. pp: 119-143.

Thompson, J.N. 1994. The coevolutionary process. University of Chicago Press, Chicago.

Sites:

http://bio.research.ucsc.edu/people/thompson/Publications.html