terça-feira, 18 de maio de 2010

Silêncio no Butantan.

Sábado (15 de maio de 2010) um incêndio dizimou a coleção do Instituto Butantan, em São Paulo. Um acervo de mais de 100 anos foi perdido e uma dor profunda acometeu a comunidade científica e funcionários do instituto. Porém, a mídia e a população em geral ainda não conseguem relacionar a importância das coleções científicas com a produção do conhecimento. Mais uma vez, como já comentado neste blog, a divulgação científica de qualidade é o melhor caminho para conscientização. Os pesquisadores, além de tudo, são formadores de opinião, e esta tarefa não pode ser deixada de lado.

Uma carta, escrita por Alessandra Bizerra (pesquisadora do Butantan), traz uma reflexão interessante sobre a produção de conhecimento e a maneira como a sociedade recebe nossos resultados. Eu, como taxonomista, lamento profundamente o acontecido. As palavras .... realmente me faltam.

Nós perdemos.
Neste sábado, dia 15 de maio de 2010, perdemos acervos valiosos no Instituto Butantan. O fogo levou um patrimônio que não poderá ser recuperado. Não sobrou quase nada para contar história. Não teremos de volta as dezenas de espécimes-tipo que foram queimadas ou os pouquíssimos exemplares coletados até hoje de uma espécie raríssima de boídeo, nem aquela cobra cega (seria ela hermafrodita?) que não existe em nenhuma outra coleção. Não teremos de volta as mais de 1,5 milhões de serpentes que foram entregues pela população ou coletadas por centenas de funcionários em viagens de campo e resgates de hidrelétricas durante mais de 110 anos. Nem os 450.000 artrópodes que foram retirados de seus ambientes de origem, muitos ainda a serem descritos. E o pior, não teremos de volta um registro histórico de uma época em que a população estabelecia um vínculo direto com a pesquisa, em que milhares de fornecedores foram responsáveis por influenciar os caminhos de pesquisa de uma instituição como o Butantan.
Garanto que maior do que a dor, hoje, é a revolta. Revolta por saber que a pesquisa básica neste país é negligenciada, revolta por saber que essa perda poderia ter sido evitada, revolta por saber que outras coleções e acervos correm o mesmo risco, revolta por ver que nada mudará.

As reportagens televisivas mostraram o incêndio, mas terminaram suas falas com as frases: "O Butantan produz 80% das vacinas e soros brasileiros. Esse serviço não foi afetado!" Como assim??!!! Quando perceberemos que para produzir soros, vacinas e biofármacos, precisamos de pesquisas, muitas delas feitas a partir de coleções como a que perdemos ontem? Quando consideraremos importantes as produções de conhecimento que não sejam unica e exclusivamente dirigidas à produção de bens de consumo imediato?

Estou triste, com dor, e muito indignada. Ainda mais por saber que a próxima notícia (que durará por volta de umas duas horas na mídia) será a perda de uma biblioteca inteira ou de qualquer outro acervo de nossas instituições de pesquisa.
Esse é o nosso país, local em que nossos patrimônios são destruídos, todos os dias, indefinidamente...

Desculpem, queridos, mas estou indignada, não somente como pesquisadora que analisou mais de 600 exemplares dessa coleção durante o mestrado e traçou uma de suas possíveis histórias durante o doutorado, mas como cidadã que vê o descaso de nossos governantes (e de todos nós) perante o patrimônio cultural, aí incluso o científico, desse país!

Abraços a todos,

Alessandra Bizerra

Pesquisadora Científica do Museu de Microbiologia do Instituto Butantan.

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Luzes de alerta!


Uma notícia de divulgação científica chamou-me a atenção hoje: Luzes de alerta, não só pelo fato de um ambiente como o Cerrado restringir-se aos livros didáticos (basta viajar pelo planalto central para averiguar isso), mas principalmente por mostrar como a Sistemática é sim o cerne de toda a biologia. Nessa matéria, é possível encontrar, além de todo apelo emocional, social e econômico pela preservação do Cerrado, aspectos de taxonomia alfa, relações ecológicas, bioquímica e farmacologia e, acima de tudo, evolução.

Como assim evolução? Evolução sim.

A enzima luciferase (relacionada aos processos de bioluminescência) é encontrada em certas espécies de insetos, algas, peixes, bactérias, fungos, celenterados, anelídeos e artrópodes, sendo os vaga-lumes os mais conhecidos. Será que essa enzima é a mesma em todos esses grupos, ou seja, são homólogas? Sabe-se que esses grupos compartilham um ancestral comum remoto e que os processos bioquímicos de produção e atuação dessas enzimas são os mesmos. Mas também se sabe que cada um desses grupos pertence a linhagens evolutivas diferentes e que, mesmo dentro de cada grupo, apenas algumas espécies apresentam a característica bioluminescente.

O problema das homologias não é recente em sistemática. Algumas proposições, como homologias primárias e secundárias (p.ex. de Pinna, 1991), tornaram-se ícones e acabam dificultando a inserção de novos pensamentos em um panorama evolutivo. Hoje, com o desenvolvimento da biologia do desenvolvimento e da evo-devo, é possível pensar em homologias profundas, em características homoplásticas como resultado de um processo evolutivo do qual as características são sim compartilhadas em um nível mais remoto da filogenia, e não mais como erro procedimental. Os estudos genéticos permitiram mostrar a existência de conjuntos gênicos homólogos compartilhados pelos mais variados níveis da filogenia. Isso só reforça a idéia da Sistemática como unificadora de toda a Biologia, pois permite compreendermos os processos biológicos e a diversidade que nos cercam com base em um arcabouço histórico-evolutivo, seja na ecologia, bioquímica, genética, taxonomia, fisiologia, entre outras áreas.

Num primeiro momento é difícil pensar na espécie humana como um animal como todos os outros, inserido em um contexto histórico-evolutivo de milhões de anos. Compreendido isso, torna-se mais difícil ainda não interpretar toda e qualquer ação humana como natural. Nenhuma espécie sobrevive sem interagir com o ambiente. É biologicamente impossível uma vez que a composição de qualquer organismo vivo e o próprio surgimento da vida relacionam-se aos chamados compostos abióticos (p.ex. luz, solo, temperatura e água). O Cerrado não será trazido de volta, mas é possível, por meio de divulgação científica e do desenvolvimento de um pensamento evolutivo, conscientizar a população sobre o ambiente que a cerca e sobre a necessidade urgente de exploração racional de qualquer recurso natural.