segunda-feira, 23 de novembro de 2009

“O tempo não pára”

Em 7 de julho de 1990 o Brasil perdia o “poeta do Rock”, Agenor de Miranda Araújo Neto (Cazuza), vítima, aos 32 anos de idade, de uma doença na época cercada de incertezas, a AIDS/SIDA. Para muitos Cazuza foi uma pessoa de muita coragem, rebelde e polêmico, capaz de revolucionar e libertar uma juventude repreendida pela ditadura. Seu penúltimo disco, O Tempo Não Pára, foi lançado em 1989.

O tempo, em nossas vidas, é percebido com um intervalo pequeno, de nascimento, crescimento e morte de pessoas queridas. Um período em que deixamos de viver com nossos pais por uma formação profissional, para constituirmos família e deixarmos nossos descendentes. Mas o tempo, o tempo não pára! E para um biólogo, tempo remete a um processo evolutivo, de descendência com modificação ao longo de incontáveis gerações.

A Terra, com seus quatro bilhões de anos, já presenciou e influenciou uma diversidade de espécies incompreensível para as limitações da percepção humana. A diversidade biológica (forma) sofre modificações ao longo do tempo e o mesmo aconteceria com as áreas nas quais esses organismos se distribuem (espaço). Assim, a história da fragmentação das áreas refletiria a história de fragmentação das espécies ancestrais até chegar à diversidade atual. Estima-se que a biodiversidade que conhecemos hoje represente apenas uma pequena parcela da diversidade pretérita. Mesmo assim, ainda não fazemos idéia do número de organismos que habita a Terra. As estimativas variam grandemente, de 10 a 100 milhões de espécies. Foram descritas até hoje menos de 2 milhões delas, uma ínfima fração de toda a diversidade estimada, e novas espécies são continuamente descobertas e descritas em todas as partes do mundo. O simples confronto desses números fornece a dimensão do desafio lançado aos pesquisadores que tratam de descrever e mapear a biodiversidade.

Em uma comparação curiosa entre números de vasta grandeza, o entomólogo E. O. Wilson, um renomado estudioso da biodiversidade, destaca que sabemos o número de estrelas na Via Láctea (aproximadamente 10 elevado à 11), bem como a massa de um elétron (9,1 x 10 elevado à -28 gramas), mas, em relação ao número de espécies, sobre isso não temos uma vaga idéia (nem mesmo de sua ordem de grandeza). Embora suas afirmações tenham sido feitas pouco mais de 20 anos atrás, as perspectivas não melhoraram muito desde então. Imbrica-se a essa questão a crise da biodiversidade: as espécies estão se extinguindo com uma velocidade muito maior do que se consegue descobri-las e descrevê-las. E este é um quadro preocupante, uma vez que a desestruturação dos sistemas vivos abalará – além da já consumada perturbação – o equilíbrio dinâmico da natureza em escala global.

A irrepetibilidade dos fenômenos evolutivos complica ainda mais a situação. Todas as formas de vida conhecidas são resultado de um processo casual e adaptativo, quanto à origem e sobrevivência, respectivamente. Dessa forma, não existem indivíduos iguais, assim como não existem ambientes, tempo e espaço iguais. A compreensão dos complexos fenômenos biológicos responsáveis pela enorme diversidade da vida é fundamental para que possamos entender o processo evolutivo.

Quando o homem empenha-se em preservar a diversidade, geralmente as espécies “carismáticas”, consegue bons resultados, como é o caso do urso panda, lobos-cinzentos, águias-de-cabeça-branca, peixe-boi, entre outros exemplos. Mas isso não muda o padrão global de avanço constante da extinção e de perda da biodiversidade que o acompanha.

Sob essas perspectivas, a sistemática biológica é ora alicerce, ora edifício, uma vez que a maioria dos estudos em Biologia precisa de um reconhecimento sistemático prévio de seus modelos de trabalho. A descrição da diversidade biológica não representa apenas um aumento estatístico do número de espécies conhecidas. Por trás disso – ou melhor seria dizer “além” – está um acréscimo de compreensão sobre a diversidade natural: as espécies, que agora existem formalmente (após receberem um nome), relacionam-se tanto sob uma perspectiva histórica como ecológica, e o conhecimento de como isso se dá pode auxiliar na manutenção e preservação dessa biodiversidade, bem como no uso consciente desses recursos.

Embora seja de fundamental importância para a Biologia, o conhecimento sobre a biodiversidade está longe de ser acessado, e mais ainda exprimido, com exatidão no tocante ao número de espécies existentes. Essa aparente incapacidade em se descrever a biodiversidade numa velocidade satisfatória – o assim chamado “impedimento taxonômico” – vem sendo debatida há algumas décadas. Inicialmente a ênfase era dada à falta de sistematas disponíveis. Contemporaneamente, a formação de pessoal capacitado é maior (o Brasil sendo um dos países com maior índice de publicação em periódicos de sistemática), contudo a diferença entre espécies a serem descritas e profissionais a descrevê-las adequadamente ainda é discrepante.

A proposição de qualquer nova espécie é uma hipótese, que, como tal, requer rigores teóricos, empíricos e metodológicos. Nesse sentido, os espaços não formais, como os museus, oferecem um respaldo importante à delimitação da sistemática biológica como ciência, tornando os exemplares nos quais se basearam essas proposições acessíveis, a fim de que seja possível a checagem de suas características e a confirmação dos resultados. Museus, sendo os protetores da integridade desses exemplares, garantem que eles possam ser acessados futuramente, de modo que as hipóteses de espécie que eles sustentam possam ser descartadas ou corroboradas através de uma nova interpretação dos dados.

Outra face da mesma moeda também contribui para a desobstrução do impedimento taxonômico, pois os museus, enquanto depositários de uma rica fonte de informações sobre os mais diversos grupos, fornecem um terreno fértil de produção científica no campo da sistemática biológica. As coleções científicas abrigadas nessas instituições constituem uma base de dados essencial não só para os estudos de caracterização de fauna e flora, mas também sobre impacto ambiental, tornando sua importância inegável. É possível inclusive dizer que o trabalho do sistemata está praticamente não dissociado dos museus, instituições mantenedoras de sua matéria-prima.

A descrição da biodiversidade é tanto o fim de um processo como também o início de vários outros. Alguns grupos animais (insetos aquáticos, por exemplo) são tidos como indicadores de qualidade ambiental, e sua identificação ao nível de espécie fornece bons indícios para diagnosticar se uma área está ou não sendo degradada. Estudos de levantamento de fauna e flora, que requerem o conhecimento fino na identificação de espécies, são de fundamental importância em estudos e relatórios de impacto ambiental (EIA/RIMA). Estudos de biogeografia (que lidam com a distribuição de espécies no ambiente) são totalmente dependentes de uma base de dados da sistemática, de modo que a qualidade do primeiro depende do refinamento do segundo. É possível usar os resultados desse tipo de pesquisa como norteadores na escolha de áreas de preservação.

Em tempos de crise da biodiversidade e impedimento taxonômico, em que a diversidade planetária está sendo perdida em ritmo acelerado antes mesmo de ser reconhecida, cabe a espécie humana sobreviver de forma que as alterações das paisagens naturais se dêem de forma sustentável. Como forma e espaço evoluem juntos ao longo do tempo, o funcionamento dos ecossistemas depende da biodiversidade associada e extinções não naturais podem comprometer de forma drástica a continuidade das espécies na Terra. O espaço, cujas modificações influenciam as formas de vida, está sendo alterado de forma irreversível. Como o processo evolutivo é único, casual e não previsível, não conseguiremos fazer previsões sobre qual espécie contará a próxima história, porque o tempo, o tempo não pára, e infelizmente não conseguimos controlá-lo.

Assim como na música, em que os poetas se vão como um curso natural da vida e as letras continuam ao longo das gerações expressando as condições sociais de uma época, as formas de vida modificam-se ao longo do tempo e, por meio dos processos reprodutivos, garantem a sobrevivência e continuidade da espécie, que pode adaptar-se às condições ambientais momentâneas, agindo e fazendo parte da história do planeta em um pequeno recorte temporal, ou extinguir-se.

Leituras sugeridas
Carvalho, M.R. et al. 2005. Revisiting the Taxonomic Impediment. Science, 307(5708): 353.
Carvalho, M.R. et al. 2007. Taxonomic Impediment or Impediment to Taxonomy? A Commentary on Systematics and the Cybertaxonomic-Automation Paradigm. Evolutionary Biology, 34(3-4): 140-143.
Kunzig, R. 2009. Ilhas da Controvérsia. Especial Scientific American Brasil. Terra 3.0. Soluções para o progresso sustentável, 1: 22-29.
Santos, C.M.D. & Amorim, D.S. 2007. Why biogeographical hypotheses need a well supported phylogenetic framework: a conceptual evaluation. Papéis avulsos de Zoologia, 47(4): 63–73.
Wheeler, Q.D., Raven, P.H. & Wilson, E.O. 2004. Taxonomy: Impediment or expedient? Science 303: 285.
Wilson, E. O. 1985. Time to revive systematics. Science, 230: 1227.
Zaher, H. & Young, P.S. 2003. As coleções zoológicas brasileiras: panorama e desafios. Ciência e Cultura, 55(3): 24-26.

sábado, 7 de novembro de 2009

Evolução e Ensino de Ciências - Aprofundando a discussão ....

Pessoal,

Quem tiver interesse em aprofundar a discussão sobre a utilização de filogenias no ensino de evolução, não deixe de visitar o blog
Um Longo argumento, que pertence a um dos autores dos trabalhos citados nas postagens sobre "Evolução e Ensino de Ciências". A postagem Ensinando evolução através de filogenias, que deverá ser continuada, discute de forma detalhada e aprofundada o assunto.

Acompanhem e apreciem!

Até mais!

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Evolução e Ensino de Ciências – Parte III

De forma geral, o tema evolução é abordado em sala de aula de forma rápida, em poucas aulas, na terceira série do ensino médio. É um tópico independente, sem relação com as outras disciplinas, distanciando a teoria de seu contexto original.

A percepção dos alunos baseia-se na relação Darwin X Lamarck, sendo que o contexto histórico no qual a teoria foi desenvolvida, as modificações de pensamento e formas de interpretação mundana ao longo de séculos são deixados de lado, assim como a influência de vários autores na obra de Darwin, em especial Wallace.

O ensino de evolução geralmente se apóia na teoria de seleção natural, sem referências a outros mecanismos evolutivos, como deriva genética, efeito do fundador, fluxo gênico, entre outros.

Essa perspectiva tradicional é prejudicial ao entendimento dos alunos, favorece a permanência e difusão de interpretações equivocadas e, acima de tudo, distancia o conteúdo ensinado da famigerada interdisciplinaridade, foco das discussões atuais sobre ensino de ciências, e amplamente facilitada quando desenvolvemos nos alunos uma forma de pensar abrangente, histórica, filosófica, e não há conteúdo melhor para atingirmos esse objetivo que o ensino de evolução.

Segundo o MEC/PCN 2002: “Evolução necessita de uma dimensão histórico-filosófica dada por um amplo senso do Darwinismo e suas conexões com ecologia e outras áreas da Biologia”. Infelizmente, ainda estamos um pouco distantes disso. A maioria dos alunos entende evolução como um processo individual, linear, determinístico (teleológico), como um progresso em direção à forma mais complexa, sendo que o ambiente muda e ocasiona a variação, sem uma compreensão da questão temporal. Além disso, Darwin está sempre certo e Lamarck é um maluco que propôs idéias equivocadas.

Mas como ensinar evolução de forma clara e condizente com a proposição da teoria? Uma abordagem com base na Sistemática Filogenética (Cladística) seria o caminho mais curto (vide p.ex. Calor & Santos, 2004; Santos& Calor, 2007 a,b).

A sistemática filogenética, proposta inicialmente pelo entomólogo alemão Willi Hennig (1885-1965), foi influenciada pelo pensamento evolutivo desde a Síntese Moderna do século XX. Lida diretamente com a descrição da diversidade natural. Propõe um método que reflete os resultados do processo evolutivo e implementa o conceito de ancestralidade comum.

Antes da Filogenética, as classificações já tentavam ser evolutivas, mas eram do tipo intuitivas. Hennig introduziu uma base evolutiva à Sistemática, na qual a descendência com modificação seria a causa do padrão hierárquico de grupos-irmãos. As essências do método Hennigiano podem ser utilizadas como instrumentos em aulas de Biologia, uma vez que a cladística esclarece alguns dos pontos de maior dificuldade de entendimento por parte dos alunos, além de introduzir uma terminologia filosófica e científica.

O objetivo da sistemática Hennigiana é hipotetizar grupos-irmãos, expressando-os através de diagramas ramificados chamados cladogramas. A partir do momento que um aluno consegue interpretar de maneira correta este tipo de diagrama, ele consegue perceber que o processo não é linear, nem determinístico e muito menos um progresso. A leitura desses diagramas, pelo contrário, demonstra que o processo é temporal, populacional, ramificado, por meio de modificações a partir de um ancestral comum, e que todos os táxons terminais encontram-se em um mesmo patamar, nem melhor, nem pior, todos igualmente adaptados às condições ambientais de uma época.

Nas palavras do geneticista Richard C. Lewontin: “A compreensão das relações organismo X ambiente, além de pré-requisito para o entendimento da evolução biológica, é a base para a formação de cidadãos críticos, com responsabilidade ambiental, do qual eles se sintam parte integrante.” E não há caminho melhor que uma perspectiva filogenética, que já é uma cinquentona a ainda distante das aulas de Biologia.


Sugestões de leitura:

Calor, A.R. & Santos, C.M.D. 2004. Filosofia e Ensino de Ciências: uma convergência necessária. Ciência Hoje, 59-61.

Santos, C.M.D. & Calor, A.R. 2007a. Ensino de Biologia Evolutiva utilizando a estrutura conceitual da Sistemática Filogenética - I. Ciência & Ensino 1(2): 1-8.

Santos, C.M.D. & Calor, A.R. 2007b. Ensino de Biologia Evolutiva utilizando a estrutura conceitual da Sistemática Filogenética - II. Ciência & Ensino 1(2): 1-8.